Aos 6 anos, Gabriel Marinho desenhava aviões. A professora chamou a mãe e lhe disse: “Seu filho só pensa nisso”. Aos 9, interessou-se por futebol. Inventava, criando desenhos, times, uniformes e campeonatos. Aos 10, ele sentiu medo. Ao ouvir um trovão, se escondia debaixo da cama. Uma tia psicóloga, irmã da mãe do menino, chamou-a e disse: “Esse medo não é normal. Procure um especialista”. A mãe não percebeu nada de errado. Aos 13 anos, uma tristeza sem razão invadiu a alma do adolescente. Isolou-se dos amigos e da família. A psicóloga da escola chamou a mãe. E lhe avisou, com compaixão: “Não é manha nem capricho do seu filho. Ele tá pedindo socorro”.
Começava a romaria dos pais a consultórios de psicólogos e psiquiatras. E, tempos depois, o laudo que mudaria para sempre a vida daquela família. Ele tinha síndrome de Asperger, um tipo de autismo menos comprometedor (leia Para saber mais). A poeta e servidora pública alagoana Isolda Marinho nunca tinha ouvido falar daquilo. Nem o pai, o contador carioca Geraldo de Souza.
Gabriel entrou numa depressão arrasadora. Escondeu-se do mundo que não o compreendia. Passou dois meses sem ir à escola. Na internet, ainda transtornada, Isolda procurava entender o que era a tal síndrome. Descobriu grupos de discussões virtuais, pais com os mesmos problemas. Entendeu que podia haver uma saída. O filho passou a fazer terapia e a tomar medicação específica. Isolda jurou a si mesma que o traria de volta ao mundo que era dele. Chorou noites insones. Embrenhou-se em pesquisas. Enfrentou a desinformação de alguns médicos e o preconceito de uma sociedade ainda despreparada para aceitar o que não é igual. Foi — é — uma longa caminhada.
Ele passou a ler, para se sentir vivo e parte de alguma coisa. E mergulhou no mundo de George Orwell, Truman Capote, Gabriel García Márquez, Isabel Allende e Machado de Assis. Espiou também a dor de Clarice Lispector. Aos 17 anos, o adolescente passou no vestibular para jornalismo no UniCeub. E escreveu, para justificar sua própria existência, no mundo que criara para si. Escrevia noites adentro. Trocou a noite pelo dia. Viajou em si mesmo. Deu vida real a personagens de ficção. Frequentou o Núcleo de Literatura do Espaço Cultural da Câmara dos Deputados, onde desenvolveu oficinas gratuitas de textos que o incentivaram a não parar.
Aos 19 anos, publicou o primeiro livro: O mundo depois do fim — misto de ficção científica e romance psicológico, em que aborda temas como amizade, moral e ética. A obra, com 188 páginas, foi aprovada pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF. Virou sucesso de crítica. Despertou até o interesse de um cineasta e de um agente literário de São Paulo. Como contrapartida ao apoio do FAC, depois do lançamento, o autor esteve, no ano passado, em várias escolas públicas falando da sua obra e de literatura.
Tristezas e belezas
Aos 20 anos, completados nesta sexta, Gabriel lança hoje seu segundo livro: Breve sonho de esperança, romance com 312 páginas, também aprovado pelo FAC. “É a história de uma guerra, entre dois países fictícios. Os personagens principais são um piloto de caça e sua companheira, que tem transtorno bipolar. Num outro extremo, vive uma estudante de jornalismo e sua mãe alcoólatra”, explica. E diz, com o olhar longe da sala da sua casa, na 207 Sul: “Dediquei esse livro a todo mundo que se sente incompreendido”.
Na orelha do livro, a escritora Cinthia Kriemler, que apresenta a obra, escreveu: “O romance exprime a familiaridade com a dor do outro... Gabriel fala de gente que dá certo, mesmo quando em volta é um caos. Há de todas as tristezas e belezas no texto deste escritor que nos brinda encontros e trocas... Nada está em excesso, nada força posições, tendências, credos ou vivências. Tudo flui. Como a vida. Gabriel é um homem perceptivo. Um escritor fervilhante, um perscrutador de almas”.
Na tarde de quarta-feira, com o livro que lança hoje em mãos, Gabriel disse ao Correio: “Escrevo porque gosto e preciso. É a única coisa que presto para fazer”. E disse mais: “É a melhor maneira, a mais direta, pra mostrar ao mundo que existo”. O terceiro e quarto livros estão prontinhos, à espera de publicação. Em Pecado e santidade, cuja ação se passa em Brasília, o escritor narra a vida de um homem que comete um assassinato, fica11 anos encarcerado e volta ao mundo.
E a quarta obra? O escritor prefere não adiantar mais detalhes, mas diz que fala da vida de uma musicista. A história, contada em primeira pessoa, mergulha na emoção feminina. Pergunto como ele consegue entender tal universo. “Eu vejo e escuto demais. Todo protagonista tem um pouco de mim e de todo mundo”, responde. Gabriel não para de criar e se reinventar. Deixou a faculdade de jornalismo no segundo semestre. Agora, estuda cinema no Iesb. Quer compreender melhor a sétima arte. Mas não pensa em abandonar a escrita. “Quero chegar ao ponto de me salvar com a literatura”, ele diz, com maturidade que impressiona para um garoto de 20 anos.
Casa de escritores
Hoje, além do livro de Gabriel, a mãe dele, Isolda, lança o seu Beijo de tangerina. “É quase um livro de bolso”, conta a poeta. A obra, cujo projeto foi aprovado pelo FAC, passeia pela delicadeza da mulher que fez da vida sua melhor poesia. “Comecei a escrever aos 14 anos, mas não mostrava pra ninguém”, conta ela, que completou ontem 49 anos e se deu de presente a própria obra, mais uma. Escreveu até se embriagar de palavras. Povoou cadernos, de punho próprio, com emoção e percepções muito particulares. Formou-se em letras na UnB.
Ensinou português e literatura para alunos da rede pública. Contou-lhes que a palavra sempre pode salvar. Em 1993, foi aprovada no concurso da Câmara Federal. Está lotada no Núcleo de Divulgação do Centro de Formação e Treinamento (Cefor). Em 2000, lançou seu primeiro livro: Sementes de amora. Em 2004, o segundo: Viço do verso. Todos esgotados.
Ao mesmo tempo que escrevia coisas como “são quietos os domingos dentro de mim. Tem ar de sopro morno, jeito de presença longe, cheiro de qualquer prazer. São dias de preguiça boba e moleza descuidada. Contém gritinhos contidos em diversos versos. Saliva de ontem de beijo disperso”, precisava entender a autossolidão que o filho se impunha. Era necessário mergulhar no mundo de dor e silêncio dele. Ele venceu. Ela venceu. Ambos venceram. A luta é constante.
Hoje, mãe e filho lançam juntos suas obras. Mais que isso. Lançam palavras transformadas em vidas. Gabriel escreve para se sentir vivo e se salvar. Isolda, para se encantar e se achar nela mesma. Ele inventa personagens, países e histórias. Inventa vidas de mentira iguais às vidas de verdade. Tem pouco e muito dele em cada obra. Comove com sua narrativa plausível. Ela brinca com as palavras. Seduz e emociona. “Procurei por toda parte, embaixo da cama, nas gavetas, na geladeira, na prateleira da estante... na mancha de batom da maquiagem desfeita, na dobra do papel inquisidor, no apartamento ao lado, nas entrelinhas do bilhete ao lado... procurei... não encontrei a mim mesma. Onde estava eu?”
Páginas da vida
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