terça-feira, 5 de janeiro de 2010

REPORTAGEM ÉPOCA - UM NOVO OLHAR SOBRE O AUTISMO

Reportagem na integra. Para quem não conseguiu comprar a edição ou deseja reler.
O psiquiatra que atende a criança da capa se chama Carlos Gadia. Neurologista infantil gaúcho que trabalha no Hospital da Universidade de Miami no Dan Marino Center, referência em tratamento de Autismo. Tive o prazer de conhecê-lo e participar de uma mesa redonda conduzida por ele na III Jornada Abenepi - Capítulo Paraná "PREVENÇÃO E DIAGNÓSTICO MULTIDISCIPLINAR NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA" em maio de 2008. Seus trabalhos serão muito discutidos aqui. Marcado em negrito na reportagem a opinião de Gadia acerca de uma possível "epidemia de autismo"

Um novo olhar sobre o Autismo
Com mais informações sobre o distúrbio, médicos calculam que o Brasil pode ter 1 milhão de casos não diagnosticados
Revista Época nº 473




"Os médicos não conseguem reconhecer os sintomas de autismo porque não são preparados para isso", diz a psiquiatra da infância e da adolescência Rosa Magaly Moraes. "A psiquiatria infantil não é disciplina obrigatória na formação de um pediatra." Segundo ela, o pediatra só vai perceber que há algo estranho com a criança quando ela já está com mais de 2 anos. Então, manda-a para um especialista. "O diagnóstico, em geral, percorre um caminho longo: do pediatra para a fonoaudióloga ou fisioterapeuta, daí para o neurologista ou psiquiatra, psicoterapeuta etc." Isso, nos casos em que há diagnóstico.
Esse número não chega a 50 mil, diz Estevão Vadasz, coordenador do Projeto Autismo no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. "Não há nenhum estudo sério sobre o número de autistas no país", diz. "Mas suspeita-se que haja 1 milhão de casos ocultos." Essa estimativa é uma extrapolação, com base no número de casos dos Estados Unidos. É uma forma de cálculo válida? "Não costuma haver uma variação grande de prevalência de autismo entre diferentes populações", diz Pedro Gabriel Delgado, coordenador da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde brasileiro. Portanto, a porcentagem de casos seria mais ou menos a mesma em qualquer país.
Os Estados Unidos viviam uma situação parecida com a do Brasil até o início da década de 80. Então a Associação Psiquiátrica Americana decidiu tornar mais abrangentes os parâmetros para o diagnóstico do distúrbio - e o país viveu uma campanha de informação para detectar o problema. Como aqui, a maioria dos médicos tinha a imagem estereotipada do autismo: considerava autista apenas a pessoa totalmente incapaz de interagir socialmente. Com as novas normas, o número de casos explodiu. A mídia chegou a tratar o autismo como uma "epidemia". Hoje, duas décadas depois, estimativas mais radicais sugerem que haveria um autista para cada 150 pessoas. Em dezembro passado, o Congresso americano aprovou a aplicação de US$ 1 bilhão em verbas para programas de pesquisa, esclarecimento, saúde ou educação.
"O número de casos registrados cresceu", diz o neurologista gaúcho Carlos Gadia, diretor-médico do Dan Marino Center, em Forth Lauderdale, na Flórida, um dos principais centros de referência em s autismo nos Estados Unidos. "Isso não significa que haja uma epidemia. Houve uma ampliação dos critérios usados para estabelecer se uma criança é autista ou não." A flexibilidade dos critérios para considerar alguém autista ou não explica a diferença nas estimativas internacionais. Na Inglaterra, há estudos ainda mais radicais que os americanos. A aplicação de um deles sugere que o Brasil poderia ter 1,8 milhão de autistas. Segundo Delgado, do Ministério da Saúde, o estudo mais adequado seria o de Eric Fombonne, da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá. Ele fala em 13 crianças autistas para cada 10 mil. Mesmo por essa estatística mais conservadora, haveria cerca de 180 mil casos não diagnosticados no Brasil.
É provável que uma campanha de esclarecimento similar à americana produza no Brasil a mesma sensação de epidemia. Sem nenhuma divulgação oficial, o Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos centros de referência nacionais no tratamento de autismo, tem filas de candidatos a paciente. Pessoas do país inteiro viajam para se consultar com Estevão Vadasz. Ele diz que acompanha cerca de 400 casos por ano. Entre eles, uns cem novos a cada ano. "Não damos conta de atender todo mundo que nos procura." Na classe média, em geral mais conectada, há um crescimento espontâneo, detectado pelo aumento do número de casos tratados em clínicas particulares. "As pessoas ouvem falar a respeito, se informam", diz a psicóloga Leila Bagardo, diretora da clínica Gradual, especializada em autismo, em São Paulo.
Autismo é uma maneira diferente de ser. Mas sei que cheguei aonde cheguei porque tive quem olhasse por mim. J.S.O., 20 ANOS, formado no ensino médio


 Segundo o neurologista Gadia, a explosão de casos nos Estados Unidos se deve à pressão exercida por pais de autistas. "As famílias começaram a se unir em organizações, fazer lobby, pressionar o Congresso", diz. "Pessoas famosas, como o jogador de futebol Dan Marino, vieram a público declarar que tinham filhos autistas." As campanhas provocaram até certo exagero. Nas escolas públicas da Califórnia, o número de autistas cresceu assustadoramente nas últimas duas décadas, enquanto o de crianças com retardo mental diminuiu muito. "Por lei, as escolas são obrigadas a dar atendimento individualizado a crianças autistas", diz Gadia. "Para outros distúrbios, não. Os médicos sabem que, se derem um diagnóstico de autismo, a criança estará mais bem amparada."
Ainda que haja exageros, a campanha pró-diagnóstico é positiva. Primeiro, ela permite que o tratamento englobe também casos mais leves, de pessoas que seriam antes consideradas apenas "esquisitas". Pequenos dramas pessoais, de gente com dificuldades nas áreas de comunicação, interação social e foco de interesse, passaram a receber atenção e cuidado. Mas o principal é ajudar a detectar mais cedo os casos de autismo. Isso faz uma grande diferença no tratamento e nas probabilidades de o paciente conquistar autonomia.
"Não existe cura", diz J.S.O., de 20 anos. "Autismo é uma maneira diferente de ser. Mas sei que cheguei aonde cheguei porque tive quem olhasse por mim." O caso de J.S.O. é o melhor argumento contra o desespero dos pais ao descobrir que seus filhos são autistas. Hoje, formado no ensino médio, ele quer fazer vestibular para a faculdade de Letras. Mas, até os 4 anos, não falava. Sua mãe diz que ele apenas repetia o que os outros diziam e emitia um "iiiiiiiiii" alto, constante e agudo. Balançava as mãos sempre que estava nervoso ou contente. Quando algo fugia de sua rotina, se debatia e chorava.
O garoto foi encaminhado à AMA (Associação de Amigos de Autistas) com 6 anos de idade. Tinha todos os sintomas de um autista clássico. "Achei que não poderíamos fazer muita coisa por ele", diz Ana Maria de Mello, gerente-administrativa da AMA de São Paulo. Mas J.S.O. surpreendeu. Aos poucos, aprendeu a falar, escrever, abandonar os movimentos e sons repetitivos. Aos 8 anos, fez o pré em uma escola normal e, daí para a frente, seguiu freqüentando o colégio e a AMA paralelamente. Já no ensino médio, passou a voltar sozinho de ônibus da escola. Ainda tem dificuldade de olhar nos olhos das pessoas. Sem malícia, é constantemente monitorado pela mãe. Mas reage como todo adolescente: "Ela pensa que eu sou criança".
AGITADOS
Os gêmeos Marcelo e Marcel, de 8 anos, não param quietos, uma característica marcante do autismo
"Os pais precisam entender que muita coisa pode ser revertida", diz Cíntia Guilhardi, outra diretora da clínica particular Gradual. "E, quanto mais cedo, melhor." A falta de informação e recursos de tratamento faz até com que algumas mães deixem seus filhos autistas amarrados na cama para ir trabalhar. "Elas não têm com quem deixá-los," diz a psiquiatra Rosa Magaly Moraes, que atende à AMA de São Paulo. "Quando isso acontece, é por falta total de opção."
Quando existe informação, a reação pode ser oposta. Ao descobrir que seus dois filhos gêmeos eram autistas, a empregada doméstica Rosângela Cristina, de 34 anos, deixou o interior da Bahia e se mudou para São Paulo, em busca de tratamento. Para isso, se separou do marido. Marcel e Marcelo Lima de Souza tinham 4 anos. Hoje, têm 8. Rosângela precisou esperar três anos para conseguir vagas na AMA para os filhos. "Antes, eles iam uma vez por semana ao Capsi (Centro de Atendimento Psicológico) e ficavam lá uma hora", diz. O tratamento da AMA tem dado resultados. Eles estão largando as fraldas e comem sozinhos.
Na falta de campanhas oficiais, os pais têm criado redes de relacionamentos. Na internet há vários sites sobre o assunto, com listas de discussões, blogs, depoimentos tocantes. Em comunidades no Orkut, o site de relacionamento mais popular do Brasil, familiares de autistas trocam informações sobre tratamentos, remédios, experiências. Também falam de seus sentimentos e riem das travessuras das crianças. "Não é tudo tristeza", diz a carioca Cláudia Marcelino, mãe de Maurício, de 16 anos, e dona da comunidade Diário de um Autista. "Eles fazem muita coisa engraçada. Além disso, nós comemoramos juntos as vitórias de cada um."

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